A Bonequinha
A chuva torrencial daquela tarde perdurou até de madrugada. Quando
acabou, Júlio que havia se acostumado com o som, acordou. Estava mais quente do
que ele esperava e muita mais escuro também.
“A luz acabou ? Não é
de assustar pelo tanto que choveu...” ele
virou de lado e bateu a mão procurando seus travesseiros. “ Ué, lembro de ter
dormido com dois travesseiros essa noite...”
No quarto, o ruído do pouco que sobrou da chuva, a água que escorria
no telhado, parecia mais distante para Júlio. Enquanto ele virava na cama,
buscando um cobertor ou um travesseiro, ele percebia que as coisas estavam mais
longes também. Após algum tempo batendo na cama, Júlio desistiu e resolveu
acender a luz para vez o que acontecia.
Foi pelo tombo que ele notou algo de errado. Ele caiu da cama, mas não
sentiu nenhuma dor, porém ele parecia ter caído da altura de uma janela aberta.
Passou a mão em seu rosto e não sentia nada, só a sensação de pano tocando em
pano. Tentou gritar alguma coisa, mas sua boca era costurada. Não sentia seu
coração, não sentia o ar entrando em seu corpo, notou que entre suas pernas não
havia nada, nem macho, nem fêmea. Quando percebeu que seus olhos eram dois
botões, descobriu porque não enxergava mais.
Mas alguma coisa dele ainda tava viva, ele podia ouvir a água
escorrendo pelas telhas de sua casa. Olhou para cima, o teto estava tão longe
quanto o céu. Sua vontade era sair dali e correr para o quarto dele. Mal
conseguia andar, suas pernas não tinham sustentação suficiente para mantê-lo em
pé por mais que dois passos e dobravam muito...
“A você ta ai, Bonequinha. Vem durmi comigo, sua chata, não sei o que
você ta fazendo no chão...” a irmã dele surgiu na porta, voltava de algum lugar,
estava vestindo um pijaminha fino rosa, com alguns gatinhos desenhados. Seu
cabelo era longo e escuro, a boneca era a cara dela.
Ela agarrou a bonequinha e deitou-as na cama: “Sabe, sem você eu não
consigo durmir, há muitos monstros por aqui e você toda noite me protege dele,
te amo tanto, tanto!!!”
Debaixo dos cobertores, ela se enfiou junto com seu brinquedo. “Fica
ai, noites de chuvas eles aproveitam mais, o barulho da chuva esconde eles...”
Aquilo não fazia sentido pra ele, dois anos mais velho que ela, mas
esperou que não fosse verdade. Não era sufocante nem mais quente debaixo das
cobertas, ele apenas ouvia as coisas que ela dizia e não podia responder, só
ouvir... ‘ Espero que isso seja um pesadelo e acabe logo...’
Pouco mais que vinte minutos, o agarrão afrouxou, o boneca notou que
sua irmã durmia feito um anjo e ele ainda não saia daquilo. Ele tira a cabeça
pra fora e de repente um suspiro soturno consegue arrepiar a espinha dele, mas
não ali na boneca, ele sentia o arrepio no corpo dele, no quarto ao lado. Ele não podia enxergar
nada, mas notou a presença de algo ali no quarto. Ele não sabia o que fazer,
até lembrar que sua irmã tinha muita cosquinha na orelha. A bonequinha começou
a passar que braço cotoco la, em pouco tempo sua irmã começou a responder. E a
coisa se aproximava, estava agora por cima deles, mas ele não sabia o que era.
Sentia um ar frio e quente ao mesmo tempo, e sua irmã não acordava. A coisa
baixou mais e começou a mexer o braço da boneca, tentando impedir que a irmã
seja acordada. “Levanta logo irmã, nossa vida depende disso...” – aquele pensamento
foi estranho.
A criatura deu um sopro com o bafo que xeirava a lavanda misturada com
xixi de gato e ele, como boneca, apagou...
“Nãoooooooo...” ele acordou assustado, estava em seu quarto, fora tudo um sonho, um terrível sonho...