Assuntos

segunda-feira, 27 de junho de 2011

Quando a Morte Ama

Toc... Toc... Toc...

As mãos dela batiam naquela porta talhada em madeira de uma casa que um dia já fora uma grande casa...
Aquele homem a esperava já a algum tempo.
- Entre, senhora! – Disse, olhando para o espelho colossal que enfeitava aquele grande hall, onde eram dadas grandes festas com muitos convidados.

Estava frio, mas o homem não se importava. O fogo, que a pouco ardia na lareira, se apagou. Dele, sobrou só algumas brasas que davam um tom a mais ao cômodo. As luzes estavam apagadas.
- Há muito te espero, achei que não precisaria forçar sua visita. – olhava para baixo agora, seu copo de bebida, já vazio, agora eram estilhaços no chão, suas mãos não o ajudavam mais, a idade trouxe seus problemas e as vezes seus movimentos eram autônomos – e tome cuidado com o chão, não quero que ninguém mais se machuque...
O vento zumbia por entre os buracos das janelas - todas de madeira, muitas, podre – trazia ao homem lembranças daquela que entrava. Era criança quando a conheceu, a época era estranha para ele (estava na puberdade, talvez) e muitas coisas passavam despercebidas pela sua mente, ainda sã.

- Você não mudou nadinha – sorriu – é como se fosse a primeira vez, você lembra? Um jardim de flores, a brisa que me aconchegava, e você, sempre com essa pressa, era a mesma. Daquela vez fora rápido demais, mas você me notara...E como continua maravilhosa – se virou para olhar pra ela. Não pela última vez.
Aquele jardim fora do pai. Quando ele a conhecera lá era o refúgio que ele usava ao invés de pedir colo pra mãe, como maioria das crianças nessa idade faz quando esta triste. Rosas, cravos, violetas... eram tantas as variedades de flores que ele se perdia só de pensar em ficar lá, deslumbrando aqueles arranjos que só seu pai sabia fazer.

- Achei que você não tinha ido com minha cara da primeira vez. Mas deve ser coisa de criança mesmo – se abaixou e começou a catar os cacos do copo – Mas viramos amigos, muito mais que isso, cúmplices. Eu era apaixonado por você.
Lágrimas escorriam pelo rosto dele.

- Pode pegar aquela vela pra mim?- ele apontou pra um lado - Já não enxergo tão bem, muito menos nesse escuro. – e lá ela foi, com seu andar suave. A vela se encontrava na cozinha, ja acesa a algum tempo. O homem sempre teve preferência pela escuridão, ou penumbra quando precisava de alguma luz. Gostava da luz da lareira quando acesa, ou de velas, no verão, quando era mais quente e o calor da lareira era de mais.

- Crescemos juntos, lembra de nossas conversas? Eu sempre falava de coisas que eu não entendia fingindo entender – Ela vinha com a luz pelo caminho que os separava (ou unia) ali – Como aquilo era bom.

O tempo tinha sido gentil com ela. Continuava quase como ele a conheceu, agora um pouco mais alta e muitas poucas rugas na pele. Ela o ajudava com os estilhaços.
Contudo, ele não era tão velho, estava por volta dos seus 50 anos, o que era o novo 20, mas a vida e o tempo não foram tão gentis com ele...

- Por que você sempre foi apressada? Sempre me perguntei isso. Pra mim só bastava estar com você, mesmo jovem, aquilo ja era suficiente pra mim. Cada hora você tinha que estar em um local. Jurava que era importante, e eu a deixava ir com um pesar. Se soubesse que você sumiria por tanto tempo, te prendia junto a mim em qualquer lugar... – ela também sorriu pra ele, enquanto o olhar dos dois se encontravam – e esse é o último pedaço – pegava mais um caco no chão - pelo menos o último que meus olhos conseguem ver. Vamos jogar isso no lixo.
Eles nunca tinham se tocado mais intimamente que um abraço. E talvez aquele tenha sido o olhar mais emotivo que eles trocaram.

Ela apenas o seguia até a cozinha enquanto ele ia jogar fora o vidro.
- Você nunca veio aqui também neh? Vou te mostrar a casa, enquanto ela ainda permanece de pé... Agora vivo mais na cidade do que aqui, mas como sei sua preferência pelo campo, preferi te chamar para cá. Teve uma época que aqui fora badalado e as portas e janelas não serviam de comida para cupim, como são servidas agora. Depois que minha esposa morreu não senti mais aquele prazer que tinha de cuidar daqui. Fazem 5 anos... E também a última vez que te vi.
“Aqui é a cozinha... O bar aqui ainda permanece cheio, se quiser alguma bebida – realmente, havia lá todo tipo de bebida, de pingas caseiras às mais requintadas garrafas de whisky – Vê aquele fogão a lenha, não é usado desde que a perdi...lá dentro deve haver o ninho de alguma coisa peçonhenta...”

Ele foi indo de volta para o hall, o chão, de madeira, rangia a cada passo deles. Ele então lembrou de quando passou no seu vestibular, a moça que o seguia não estava lá para comemorar havia um tempo já. Ele conseguiu muitas coisas a partir dai. Conseguiu ficar famoso. E só a viu poucas vezes durante os 30 anos seguintes.
“Esse Hall... Quantas pessoas já não passaram por aqui, eram grandiosas minhas festas. Pena que você parecia estar longe, sempre longe. Acho que você não aproveitou nenhuma, não lembro de ter você aqui.” Olhou com pesar para todos os lados. “Estranho o espelho ser a coisa mais duradoura aqui, não ter quebrado até agora, ou rachado em tantas comemorações que tivemos aqui”.
No centro desse hall de entrada havia uma escada, para a qual ele seguia agora.

Ela se olhou um tempo no espelho, a vela iluminava o seu rosto e ela parecia fascinada com tudo aquilo. Ele a chamou:
- Suba, minha querida. Lá em cima tenho mais histórias para contar de todo esse tempo – ela deu mais um olhada para o espelho e o seguiu. Seu vestido era branco, colado ao corpo; o decote que ela usava a deixava mais chamativa ainda. Suas curvas não mudaram nada desde quando ele tinha por volta dos 17, 18 anos, o homem pensou.

- Lembra do que você me chamava? Leaf. Folha em inglês, mas também me lembrava vida. Como era bom ouvir ou ler algo que eu sabia que era de você pra mim. Leaf... – no rosto dela escorriam lágrimas e brotava um sorriso...

O andar de cima era mais luxuoso, rústico, mas cheio de coisas que fazem lembrar qualquer casa imperial. Móveis, pinturas, outras obras de arte enfeitavam uma sala que se ligava, através de um corredor, a dois quartos, um banheiro e uma varanda.
- Quantas noites não passei aqui durante os quase 10 anos que fui casado com minha mulher. Ela me fez feliz, como você me fez...
Na sala havia outra porta que dava pra um pequeno quarto onde eram guardados vários quadros com quebra-cabeças montados...
- Faziamos muito eles – ela entrava pela porta, com a curiosidade de uma criança – era um de nossos passatempos quando estavamos juntos... fizemos uns 30 nesses 10 anos que fomos casados. Algo dela ainda vive aqui – ela olhou para eles, como se contasse peça a peça cada um, parecia estar extasiada com aquilo....
Ela ficou la durantes mais uns dois minutos.

Depois, foram em direção ao quarto.
- E aqui, quantas outras mulheres já não passaram antes de eu me casar? Eram tantas. Tempos ótimos aqueles também. Como eu gostaria que você passasse por aqui também... – um pouco de silêncio... e mais um pouco... ele abriu a porta do guarda roupa, que revelou uma passagem para um outro banheiro, magnífico também. Havia uma banheira nele e um teto de vidro, uma a vista livre para olhar para o céu enquanto se banhava ali...
“Se essa banheira falasse...” ele olhou apaixonadamente para a banheira “... mas vamos à varanda, onde esse corredor acaba.”.
Ela olhou para a banheira e ficou algum tempo olhando para o teto. Para o céu. Naquela noite, não havia lua e dali poderia enxergar qualquer estrela... era acalmante, era um sonho...

Quando voltou a si, ela seguiu até a varanda, que estava aberta. Leaf não estava lá... o vento fez as portas baterem... Calmamente ela foi voltando para o hall de entrada. Leaf estava lá... se olhando novamente no espelho, com um copo de bebida na mão, vazio... Ele a viu com fascínio descendo a escada.
Ela o abraçou terna e apaixonadamente durante um bom tempo. Demonstrando o máximo de sentimento que ela poderia demonstrar. Então ela lembrou da primeira vez que o viu:

“Estava ele, criança no jardim de seu pai. Sua mãe acabara de morrer e ele não tinha pra onde ir... Arrumavam sua mãe, que tinha pedido para ser enterrada naquele jardim. Ele tinha seus quase 12 anos, a família chorava enquanto o caixão era colocado dentro da cova, ele tinha ido pra um canto, deitar entre as flores enquanto a amiga vinha buscar mais uma alma. Ela notou que ele a havia visto, depois de tantos anos, uma pessoa a vira. Ela não acreditava e passou a visitá-lo sempre lá. Ela parecia para ele como uma humana comum, que crescia junto com ele. Ele a amava realmente. Só ela perdia seu tempo com ele, ela que não tinha, mas tinha, muito tempo. Ela que ouvia o que ele tinha a dizer sobre vida. Sobre como gostava daquele jardim e das folhas, que pareciam tão vivas quanto as flores . Ele que começava a aprender com ela coisas que não poderia aprender com ninguém mais. Ela também o amava...”

Quando o pai morreu, ela se afastara do garoto que tinha 17 anos... Passara 6 anos da vida dele com ele e depois sumira, só aparecendo, esporadicamente, para buscar outros próximos.
A última vez que ele a vira fora quando ela viera buscar sua mulher, que mal soube, ela estava grávida. Faziam cinco anos desde então.

Ele que agora já não era mais são, havia esquecido por que sua amiga saía tanto, quem sua amada de infância era de fato. E por que ela estava ali, entre cacos no chão, um corpo caído e abraçando um homem morto.
Assim, ela sussurrou no ouvido daquele que fora o único que teve tempo pra ela:
- Vim te buscar, meu Amor...